sábado, janeiro 19, 2008

Um texto comprido


Então chegaram a minha casa e disseram-me:
-Mas você não consegue escrever coisas compridas!
-Coisas compridas como?
-Bem, romances, crónicas autênticas, ensaios sólidos.
-Não, isso não sou capaz.
-Então você não é um escritor.
-Pois não. Quem se atreveu a chamar-me tal coisa? -aí é que eu me ia encanzinando.
-Não é ofensa, desculpe. Mas uma coisa comprida, por favor, não arranja?
-Olhe, o mais comprido que tenho é isto. E já foi difícil. Quando as coisas vão a ficar maiores, deito logo fora. Compreende, não é?
...


Mário-Henrique Leiria

in Contos do Gin-Tonic

quinta-feira, janeiro 10, 2008






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sábado, janeiro 05, 2008

9

Tu
que não cabes em casa nenhuma
tu
que vais leve como as nuvens
no outono
habitas em mim e ouço
o teu perfume a tua
respiração
nas rosas que se abrem
e dissipam
no meu poema.


Casimiro de Brito

in Opus Affettuoso (1997)

no marítimo lodo da fala fazem ninho
pássaros de sal com suas asas afiadas
sulcam
o susto de ficar sozinho
e a cabeça sibilante duma libélula esvoaça
na visão dourada do sonho o tempo circular dos dedos
no copo as mãos em movimento de esquecidos barcos
sobre vagas de poalha estelar onde naufragam
as palavras sem nexo e repetidos gestos
devasso percursos de entorpercidas praias
algures no estilhaço rubro dos mapas abandono
o que amei já não tem importância e regresso
ao isolamento onde a treva se enche de segredos e
a voz do mar acorda o dormente coração
do adolescente marinheiro que partiu para morrer
o sonho agarra-se ao sarro das velas e
a alba fustiga os vidros da janela onde
encostei a cara para chorar como as glicínias
regresso ao cais regresso
com este lamento ao leme os pulsos cansados
pelo brilho cortante do sal aceso no vento que transporta
e agita as silentes sombras de feras longínquas
e perfura o sono e a gestação fantástica dos lírios
magoadas águas
reflectindo cicatrizes lancinantes de néons
o cais por fim o cais onde desembarcámos e
de nossos corpos não nos lembraremos mais


Herberto Hélder

in «Alguns Poemas da Rua do Forte», 1983

Minha cabeça estremece com todo o esquecimento.
Eu procuro dizer como tudo é outra coisa.


Herberto Helder