quinta-feira, junho 30, 2005

"O MENINO E O CAIXOTE"


- Não pode ser- disse o senhor Sousa ao filho, o Ernestinho de oito anos.
- Mas, papá, eu vejo nos filmes. Todos têm- afirmou a criança, à procura de uma salvação para aquilo que lhe parecia um desejo certo.
-Onde é que já se viu um leão em casa? Só nessas fitas idiotas. E, além disso, o menino não vê que não há espaço? Para a semana arranjo-lhe um gato bonito, daqueles que bebem leitinho e fazem miau.
O Ernestinho desistiu de convencer o pai. Para quê? Era um homem com bigode, sempre a explicar o que não era preciso. Nem sequer percebia de leões.
Sentou-se no chão a pensar. Com certeza que devia haver um leão ali em casa! Não era a vassora atrás da porta, nem a cadeira larga da mãe dormir aos domingos, nem sequer o embrulho do lixo à espera de ser deitado fora. Foi investigar, toda a gente sabe que os leões estão onde menos se espera.
Na cozinha, lá no fundo, estava o caixote vazio que trouxera as compras da Cooperativa. O Ernestinho pousou-lhe a mão, acariciou-o com ternura e um certo receio. O caixote rugiu e sacudiu a areia amarela e antiga que lhe aquecia a juba. O menino puxou-o ao de leve, como quem ensina e acompanha, e o caixote seguiu-o, pisando firme.
O Ernestinho sentou-se no chão da sala. Entre o sofá e a mesinha da televisão o caixote ficava mesmo bem, confortável, como na caverna onde nascera e dera o primeiro rugido.
- Agora vamos caçar, Baluba- explicou o Ernestinho ao caixote.
- Que faz o menino aí com esse caixote?- perguntou severamente o senhor Sousa, abrindo a porta, de sobrolho franzido?
O menino olhou para o pai, assustado, e depois para o seu amigo Baluba.
- Mata o velho, Baluba!- gritou, num desespero.
O leão saltou veloz e, com uma única dentada eficaz, arrancou a cabeça do Senhor Sousa.


Mário-Henrique Leiria

in Contos do Gin-Tonic

terça-feira, junho 28, 2005

"GIN SEM TóNICA"


Uma garrafa de gin
estava a preocupar
o pescador
a garoupa e o rodovalho
não tinham aparecido
pró jantar
que fazer?
telefonou ao ministro
da Pesca e do Trabalho
mas o ministro
estava a trabalhar
na cama
com a mulher
foi então
que a garrafa de gin
sugeriu discretamente
porque não
telefonar ao presidente?
telefonaram
o presidente da nação
estava em acção
na cama
com a mulher
nessa altura
até que enfim
encontraram a solução
o pescador
foi para a cama
com a garrafa de gin


Mário-Henrique Leiria

in Contos do Gin-Tonic

domingo, junho 26, 2005

"Pace non torvo..."



Pace non torvo, e non ò da far guerra,
E temo e spero, ed ardo e son unghiaccio,
E vollo sopra'l cielo e giaccio in terra
E nulla stingo e tutto'l mondo abbraccio.

Tal m'ha in prigion che non m'apre né serra,
Né per suo mi riten né scioglie il laccio,
E non m'ancide Amor e non mi sferra,
Né mi vuol vivo né mi trae d'impaccio.

Veggio senza occhi; e no ò lingua, e grido,
E bramo di perir, e cheggio aiuta,
Ed ho in ódio me stresso ed amo altrui.

Pascomi di dolor, piangendo rindo,
Egualmente mi spiace morte e vita:
In questo stato sou, Donna, per vui.


Petrarca

(espero que não venha nenhum tetra-tetra-neto pedir para lhe pagar os direitos de autor ;P )